domingo, 11 de março de 2018

Amor de Café





Sempre fui livre, um cara que via no desprendimento a filosofia de vida mais coerente com quem eu acreditava ser.Não que fosse misantropo, me acomodava bem ao termo "sociável". Embora assim fosse, inúmeras vezes, o jeito livre de me relacionar fazia com que as pessoas ao meu redor me enxergassem como alguém egoísta e solitário.Amava, me apaixonava, mas o pronome possessivo era inexistente, ele era incapaz de acompanhar meu nome. Era feliz assim. Acreditava ser.

Outono,fim de tarde, a paisagem já me antecipava transformações vindouras. Porém, distraído, acreditava que aquele seria só mais um mês de Maio. Eu caminhava imerso por outro mundo, tendo grudado as minhas orelhas um par de fones no último volume. "Porque mistério sempre há de pintar por aí..." - cantava, Gilberto Gil.  Minha distração me impediu de ouvir os trovões anunciando chuva, quando dei por mim as gotas já tocavam o meu rosto. Corri, buscando um lugar para me abrigar.

Encontrei uma cafeteria, era o lugar perfeito e aparentemente, agradável. Café quente para despertar o corpo encharcado por águas pluviais. Sentei-me a mesa, pedi um café expresso com pouco açúcar. Pensei em acessar minhas redes sociais pelo celular enquanto esperava o meu pedido chegar,mas a bateria havia terminado. Fato que me deixava desconfortável, momentaneamente.

- "Senhor, o seu... Sua desastrada! Por acaso é cega?"  (Uma moça tropeçou e derrubou a atendente que me trazia o café.). - "Me desculpe, trarei outro café para o senhor", disse a funcionária da cafeteria tentando simular a irritação pelo ocorrido.  Sorri e disse : "está tudo bem" . A moça desastrada, levantou-se rapidamente e direcionou-se ao banheiro, possivelmente para se recompor. 
Já apreciando meu café, sinto um toque leve no meu ombro esquerdo:

"Gostaria de me redimir pelo seu café desperdiçado." . 

"Que isso, não é necessário. Sente-se, me diga, qual seu nome?"

"Laura, a moça desastrada se chama Laura..rs" - me disse com um sorriso desconcertado. - " Deixe-me pagar o seu café, por favor, senão passarei o resto da tarde culpada pelo que houve."
"Tudo bem, pague o café e me faça companhia. Assim estaremos quites".


Conversamos por horas. O incidente rendeu uma ótima tarde. Fiquei intrigado com ela, se é que essa palavra cabe ao que senti. Foi um estranhamento, algo em mim se acomodou, e não foi a sensação do café quente que abraçou meu corpo molhado, era a voz dela que alcançava alguma coisa em mim. Eu ainda não sabia mas nesse dia eu  conheci o par de olhos que me enlaçariam para o resto dos meus dias.

Ao cair da tarde, nos despedimos e pedi o número do telefone dela, que para minha surpresa, recusou. Anotei o meu número em um guardanapo e entreguei a ela. Dei um beijo no rosto ruborizado da bela moça e sorri.
Fui pra casa, tomei banho, preparei meu jantar como habitual. (Acredite, morar sozinho faz um homem aprender a se virar bem.) Escolhi um filme e deitei na cama. Eu, que sempre me senti confortável com aquela condição me vi solitário. A cada notificação no celular, a expectativa de que uma delas fosse de Laura. Mas não.. Adormeci.

Dias se passaram, voltei inúmeras vezes à cafetaria na esperança de reencontrar com a moça desastrada novamente. Todas as tentativas foram inúteis, o que me deixou frustrado. Na verdade, me sentia ridículo por não saber o que buscava em Laura e mais ainda por me frustrar ao não encontra-la. Decidi atravessar a rua todas as vezes que passasse pela cafeteria daquele dia em diante. E assim fiz.


Naquela noite haveria a inauguração de uma livraria para a qual eu trabalhava como publicitário, qualquer pensamento que não fosse relacionado ao trabalho, estaria descartado. Chegando ao evento, percebi que o celular ficou em casa, provavelmente, esquecido em cima da mesa da cozinha. Voltei para busca-lo.

Já com o celular em mãos, entrei no carro com pressa, só tinha 10 minutos para chegar a livraria. Quase chegando ao destino, o sinal fechou. Um casal discutia enquanto atravessava na faixa logo a minha frente. A mulher chorava enquanto era puxada pelo braço. Era Laura, embora fosse difícil aceitar que aquela criatura acoada como um animal era a mesma pessoa que conversou comigo naquela cafeteria. Desejei sair do carro, dar um soco na cara daquele idiota e coloca-la dentro do meu carro, leva-la comigo.O sinal abriu e os motoristas impacientes, que estavam atrás de mim, buzinavam. Acelerei e segui para a livraria.

O olhar perturbado de Laura não saia do meu pensamento. Antes que o evento terminasse, inventei uma desculpa qualquer e fiz o caminho de volta para casa. Vagarosamente, olhava para cada canto da rua, esperando ver Laura. Não vi, nem ela, nem o homem que a agredia, nada. E o vazio em meu peito aumentava, me sufocava. 

Em casa, inconformado, me joguei no sofá e chorei. De raiva, de medo, de impotência, de tristeza... Chorei como nunca havia me permitido chorar. Adormeci meio a lágrimas. Meus olhos pesados, custavam a se abrir, a luz da tela do celular perturbava a visão. Quando me dei conta, percebi que era uma ligação que insistentemente fazia a tela se acender. Mal vi o número de quem ligava, arrastei a tela e com a voz ainda rouca disse "oi". "Fernando, é a Laura" - disse . A frase me fez saltar do sofá como se um balde de água gelada me tocasse a face.



- "eu vou te buscar, eu vou te tirar daí. Me fala onde você está, Laura?"
- " Me buscar? Do que você está falando?"

- " Laura, aquele homem estava te machucando.. eu vi. Quem é ele?"
- " Fernando, estou te ligando pra dizer que foi muito bom te conhecer. Ainda que tenhamos conversado apenas algumas horas, foi libertador. Te conhecer foi minha libertação, não se esqueça nunca disso. Tenho que desligar."

Nenhuma das minhas perguntas foi respondida. O silêncio se fez. E em minha mente as palavras de Laura me soavam como uma despedida. E pela cena que presenciei, o tom da voz dela ao telefone me desesperava ainda mais. Agora eu tinha um número de telefone para o qual poderia ligar. Retornei a ligação, mas ela não me atendeu. Repeti o gesto por dias e só ouvia o bipe sinalizando a caixa postal. Não poderia viver como se nada estivesse acontecendo, Meu Deus! Mas vivi, por 5 anos. Acreditando que o pior tinha acontecido, por covardia minha.


Fui morar em outra cidade por motivos profissionais e também por não conseguir me desvencilhar do peso que a lembrança de Laura me causava. Me acomodei em uma casa que por muitos dias parecia grande demais para mim, mas do tamanho exato da minha solidão. Eu mudei, o homem livre, desprendido, com sede de vida, se transformou em um outro, calado, introspectivo e triste. Apenas um hábito se mantinha. Todas as tardes eu caminhava.

Em uma dessas tardes, quando voltava pra casa, a música que ouvia foi interrompida pela chamada em meu celular. O número era desconhecido, deixei para retornar quando chegasse em casa. Cheguei, fiz café e sentei-me à mesa para fazer a ligação para o número desconhecido. O cheiro de café me trazia boas recordações. 

- "Alô"

- " Será que você pode me convidar para um café? Dessa vez, você paga." (risos)

...
- "Alô, Fernando, você está me ouvindo?"
- "Sim, Laura, sim..." (meu coração sentiu como um soco, um soco desfibrilador.)
- " Amanhã para você está bom? Na nossa cafeteria?"
- "Sim, está..." 
- "Até amanhã, beijos"


Não fui capaz de esboçar qualquer tipo de sentimento. Não fui capaz de questionar, de me revoltar, de exigir explicações. Só desejava ver a noite se esvair para que o amanhecer trouxesse a esperança de volta para mim. Não pude esperar até o dia seguinte, voltei para a cidade onde conheci Laura. Estacionei em frente a cafeteria e permaneci.

Amanheceu. Um pouco mais equilibrado, me recompus e liguei para Laura. Antecipamos o café da tarde para o café da manhã. Tínhamos muito o que conversar. 

Reencontrar aquela mulher que eu só vira duas vezes, foi uma sensação indescritível de renascimento.Abracei-a e um silêncio confortante nos tomou. Nada precisava ser dito. Uma lágrima tocou meu rosto e o dela. Entramos na cafeteria e conversamos, como se nunca tivéssemos nos afastado, como se a vida inteira estivéssemos assim, um diante do outro. Como se só aquele momento fosse importante. E de fato, era.

Laura me contou que naquele período em que nos conhecemos, ela enfrentava o fim de um casamento abusivo. E naquele dia, que derramou o meu café no chão ela pretendia se matar. Por não suportar viver mais presa a um homem que a fazia sofrer. Ela se via incapaz de se livrar dele, portanto, se livraria da única forma que achava possível, o suicídio.

Nossa primeira conversa, não acomodou apenas o meu coração, mas trouxe esperança para o coração dela. E viver era a única coisa que Laura decidira fazer daquele dia em diante. Contudo, essa decisão gerou grandes conflitos, sobretudo com o marido abusivo. A briga que presenciei foi decorrente de uma denúncia feita contra o agressor. Foi a primeira tentativa de fuga. Algumas outras vieram, até que enfim, Laura conseguiu se separar.
- "Eu não podia te envolver em todo sofrimento que vivia... Não seria justo. Você era uma pessoa tão feliz com a vida, tinha um jeito tão bonito de enxergar as pessoas, o mundo... Eu não tinha o direito de te tirar isso, Fernando."
- "Tudo isso se foi, Laura. Se foi... Você levou o melhor de mim quando sumiu. E hoje, trouxe de volta."
-" Tenho tantas coisas para te explicar... Não sei se tenho esse direito mas preciso tanto do seu perdão."
- "Ah, Laura... Não tem perdão. Não existe motivos para isso. Eu só queria você comigo, e hoje, você está. Nada mais importa."
...

Seguidamente, nos encontramos por inúmeras vezes. Para falar do passado, para desembaraçar nossos nós e vivermos, o que ansiávamos viver. Meu desejo por liberdade se aquietou no peito de Laura e o medo dela de se permitir amar se rendeu ao meu cuidado. Não sei se por sina, destino ou força do universo, mas aquele olhar foi meu desde o primeiro instante, e hoje, é a única coisa que me faz acordar desejando a ele, cada dia mais, me prender. Laura é meu amor, sou todo dela. E em nosso existir somos apenas um. Livres,enfim.







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